A edição de 6 de outubro do Cine Debate do CFCL Benê do SINESP levou aos filiados, pela plataforma Zoom, um debate sobre o longa turco Mucize. A conversa marcou o fim de um ciclo de análises sobre produções realizadas fora da grande indústria cinematográfica dos Estados Unidos e da Europa. Durante esse período, os professores Jean Siqueira e Marcos Mauricio lançaram luz sobre produções da Ásia e da África.

O poder emancipador da educação

 Apesar de o território da Turquia ocupar a parte oriental da Europa (por exemplo, a cidade de Istambul e até a capital do país, Ancara), boa parte das terras turcas se situa no extremo ocidente da Ásia (por exemplo toda a região mais montanhosa, chamada de península da Anatólia) – daí a Turquia comumente ser referida como um país da Eurásia. Inclusive, é nessa região de montanhas ao leste, mais pontualmente no povoado de Palu, situado na província de Elaziğ, que se passa a história de Mucize (palavra turca que significa “milagre”).

Em síntese, o filme conta a história de um professor, Mahir, que precisa se deslocar para o povoado de Palu a fim de cumprir suas obrigações como funcionário público e, assim, assegurar os benefícios de uma futura aposentadoria. Ao chegar lá, constata que não há uma escola no local, bem como toma contato com um jovem com deficiência motora e aparentemente mental, Aziz, que apesar de acolhido com carinho pela comunidade, sofre diárias provocações e bullying das crianças dali. Mahir, então, consegue organizar a construção de uma escola e passa a desenvolver um elo afetivo especial com Aziz, modificando sua vida e a própria vida da comunidade de Palu.

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O longa, lançado em 2015, é dirigido por Mahsun Kirmizigül, que também é roteirista e atua no filme – em um papel secundário, como Bozat, um dos irmãos de Aziz. Kirmizigül tem mais outros seis filmes como diretor/roteirista (também trabalhando como ator em alguns), sendo um deles, Milagres do amor, lançado em 2019, uma espécie de continuação da história de Mucize. Além dessas atividades como diretor, roteirista e ator, Kirmizigül também é um conhecido cantor na Turquia.

Os desafios da educação pós-golpe militar

A maior parte da narrativa de Mucize se passa nos primeiros anos da década de 1960, período em que a Turquia sofreu um golpe militar – mais um de tantos ocorridos no período da Guerra Fria e com a anuência, quando não colaboração direta, dos EUA – e seu primeiro-ministro, Adnan Menderes, o primeiro eleito democraticamente no país, foi deposto, preso e executado junto com outros membros do seu governo. Em uma das cenas do filme, quando o professor Mahir vai solicitar junto ao governante da região onde Palu se situa investimentos para a construção de uma escola, a informação do golpe é trazida à tona, permitindo, assim, à audiência situar historicamente a narrativa.

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Entre os temas presentes no filme, e destacados nas conversas do Cine Debate, foi citado, com ênfase, o papel transformador da educação, em especial a maneira como o professor Mahir integra Aziz às atividades da escola, que até então era visto como um jovem incapaz e sem qualquer autonomia para desempenhar as atividades sociais típicas de pessoas adultas da comunidade.

A inclusão de Aziz, o reconhecimento de suas potencialidades, de sua capacidade de aprender e, consequentemente, as profundas mudanças em sua vida e na dinâmica social do povoado de Palu são o ponto alto do filme.

A  narrativa de Mucize parece efetivamente se construir sobre a ideia do caráter humanizador da educação, sobre o papel dos educadores como agentes ou sujeitos de transformação social – portanto, um grato presente para o mês onde se celebra o “dia dos professores” em um país onde a profissão há anos vem sendo demonizada por discursos extremistas, carregados com as tintas do fascismo (lembrando que uma das características centrais do fascismo, como apontadas por Umberto Eco, em “O fascismo eterno”, e Jason Stanley, em “Como funciona o fascismo”, é a rejeição sistemática do pensamento crítico, reflexivo, da ciência e do conhecimento).

Sobre Aziz, também foi debatido qual seria sua condição clínica, de qual seria o problema por trás de toda sua dificuldade de desenvolvimento motor. O filme não toca essa questão com clareza. Especulou-se que poderia ser um caso de paralisia cerebral. Seja como for, Mucize, que provavelmente não por acaso signifique “milagre”, mostra a incrível evolução de Aziz a partir do momento em que alguém, no caso o professor Mahir, vê nele potencial para o aprendizado.

Opressão às mulheres é traço comum em muitas culturas

Outro tema importante observado na discussão foi o do papel da mulher na sociedade. Em um país muçulmano dos anos 60, em um vilarejo isolado e aferrado a tradições antigas, as mulheres da região de Palu são “meras” serviçais de seus maridos. Os casamentos são arranjados, cabendo às mulheres apenas a missão de escolher as noivas de seus filhos. O professor Aziz, mais bem informado e oriundo de uma cidade mais moderna, questiona, por exemplo, o fato de as meninas do povoado não poderem estudar, e barganha com os líderes da comunidade que sua presença como professor no local estaria condicionada à abertura dessa possibilidade, o que acaba sendo aceito sem maiores contestações. Apesar desse pequeno avanço no sentido da igualdade, o filme mostra com muita objetividade o caráter de “propriedade” das mulheres, que podem ser oferecidas, dadas, de uma comunidade para a outra, sem que elas mesmas possam opinar a respeito de seus próprios destinos.

Transitando entre o gênero cômico e o dramático com muita facilidade, Mucize carrega um forte apelo emocional, ponto enaltecido pela trilha sonora que, ainda que não empregada de maneira original, é usada de modo muito eficiente para causar emoções na audiência – não por acaso, muitas pessoas presentes no Cine Debate relataram terem ido às lágrimas em alguns momentos do filme.

Também a direção de fotografia do filme foi mencionada e elogiada que, apesar de não apresentar inovações do ponto de vista cinematográfico, aproveita-se das belas paisagens da região da Anatólia para mostrar vários planos abertos, que certamente impactam o olhar.

Por fim, a atuação de Mert Turak, no papel de Aziz, foi unanimemente enaltecida. A expressão corporal e facial, muito realista – e remetendo à fantástica atuação de Daniel Day-Lewis em Meu pé esquerdo, vencedora do Oscar de 1990 – certamente contribuíram decisivamente para o envolvimento da audiência com o personagem e da preocupação com o seu destino.

Assim, depois de uma viagem pelo cinema indiano (RRR), nigeriano (Amina), senegalês (Atlantique) e turco (Mucize), o Cine Debate em breve entrará em outro ciclo para explorar o cinema que se faz em todo o mundo.

A ideia é que as experiências do Cine Debate sejam cada vez mais inclusivas e voltadas para abarcar toda a riqueza e variedade que o ser humano é capaz de produzir, com a mente aberta para a diferença, a diversidade e a pluralidade de nosso planeta.

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